A FRASE MAL-ASSOMBRADA
11 de abril de 2002
Publicada originalmente no Correio Braziliense
Ando assombrado. Não por um fantasma, mas por uma frase. Ei-la: - Se Deus não existe, tudo é permitido.
Dias atrás, liguei a televisão e deparei-me com Ariano Suassuna, mestre a quem devoto enorme fatia do meu tempo de leitura. Pois bem, lá estava ele concedendo uma entrevista. Perguntaram se acredita em Deus. Disse que sim e pronunciou-a; ela, a frase.
Dois dias depois pego, sem maiores pretensões, a Folha de S.Paulo. Olhava as notícias mais para distração do que por interesse. Súbito, salta-me aos olhos uma nota da coluna Erramos. O jornal avisava aos leitores que, ao contrário do informado num texto publicado na véspera, a frase (e a repetia, entre aspas) não foi pronunciada por Nietzsche, mas por Dostoiévsky, no romance Os Irmãos Karamazov.
Veja bem, estimado leitor, a frase contém uma transcendência quase total. Pessoalmente, a considero a melhor frase já escrita em qualquer língua em todos os tempos. É de um escritor russo, mas não perde um grama de sentido traduzida para o nosso português. E assim o é com o inglês, o francês, o chinês, sânscrito, o avéstico.
Analisemo-na pela forma, antes do conteúdo. Sete palavras a formam. Ou as formam, porque são duas frases. Na primeira parte, há um condicionante e uma negativa. No fim, um generalismo. Estudantes de comunicação hão de dizer “é péssima”. E ainda tascarão um inapelável ponto de exclamação depois da classificação.
Aprendem que a melhor forma de um emissor conservar o exato sentido da mensagem no caminho até o receptor é fugir de negativas, condicionantes e generalismos. Mas aqui, não. Tais conceitos não resistem a pouco mais de meia dúzia de palavras.
Quanto ao conteúdo, temos um marco filosófico. O condicionante extirpa de antemão qualquer réplica. E o fazendo, torna o resto verdade definitiva.
A verdade, que se revela óbvia, cristalina, é que a existência de Deus (aqui já vão trezentos milhões de conceitos) sugere um padrão moral. Ou seja, há um certo absoluto e um errado absoluto, independente de parâmetro cultural.
É quase o contrário de um dos preceitos de Niezstche, de que não existe certo ou errado, tudo depende de ponto de vista (acho que daí nasceu a confusão da Folha).
Pois bem, conversava com um político na semana passada e ele recorreu à mal-assombrada. Não lembro à guiza de quê. Aliás, lembro. Ele argumentava contra os métodos de determinado candidato à Presidência da República. Dizia que a conquista do poder demanda certos pudores. “Afinal, ...” e pronunciou-a com ar dialético, sem dar-lhe o devido crédito.
Comecei este ensaio dizendo estar assombrado pela frase e até agora não há sinal de espanto. Mas você, leitor atento, há de concordar que a frase está ganhando uma certa onipresença, o que é de impressionar.
Anda na TV, nos jornais, em bate-papos despretensiosos. Não vai demorar e veremos pichações nos muros. Catarse absoluta, um desses jovens que venderam a privacidade à televisão hão de pronunciá-la antes da sobremesa. Ou um garoto propaganda qualquer vai fechar o anúncio de promoção de magazine com ela.
Minha intenção de entender tal onipresença está cada vez mais parecida com paranóia. De uma hora para outra, a frase cai na boca do povo como se fosse um político corrupto. Pior, não há nada que explique o fenômeno. A cada instante, parto às elucubrações.
Dostoiévsky foi um escritor brilhante, mas era alcoólatra e viciado em jogo. Seu pai foi assassinado pelos servos da fazenda onde morava. Densa, sua obra literária rendeu-lhe uma temporada de trabalhos forçados na Sibéria. Os Irmãos Karamazov é seu último romance, escrito na volta do exílio. Acredita-se que seja também sua obra-prima fundamental. Nela, faz uma crítica profunda à Rússia, personificada na família do velho Karamazov, um cidadão medíocre, marido pusilânime e pai opressor, assassinado por um filho ilegítimo.
Não encontro semelhanças entre o Brasil de hoje e a Rússia de ontem que justifiquem a onipotência da mal-assombrada.
Talvez sejamos um país alcoólatra e viciado em jogo, mas os dramas nacionais são bem mais pastosos do que o sangue que lavou a Rússia na geração seguinte a Os Irmãos Karamazov.
Se lá ele foi profético, aqui é apenas termômetro. Que mede o alto grau em que pulula a futilidade nacional e nos lembra, como um letreiro de motel: cuidado, Brasil, nem tudo é permitido.